Na última quarta-feira (22), a Polícia Militar de São Paulo apreendeu uma VW Kombi na avenida Aricanduva, em São Paulo. Nada de extraordinário não fosse o fato de a singela van ter um débito de R$ 25.839.476,48 em multas de trânsito. Exatamente 2.278 infrações cometidas entre 2012, último ano em que o veículo foi licenciado, até hoje. O motorista, não identificado, estava com a carteira vencida desde 2013. Mas o pior é que algo tão grave tem se tornado absurdamente comum. Este é apenas mais um dos casos de veículos sem condições de rodagem e sem documentos que viram salvo-condutos nas mãos de gente que nem habilitação tem.
Em 24 de julho deste ano, um Ford Escort 1996 foi apreendido em outra operação policial, feita especificamente para capturá-lo. Isso porque o veículo era um colecionador de infrações de trânsito e sempre as cometia na mesma região. Por coincidência, também na avenida Aricanduva. Foram 1.788 multas que totalizaram R$17.662.127,17. Isso segundo a Polícia Militar na época da apreensão. Em excelente reportagem da Veja SP, o número sobe para 1.975 multas e o valor, para R$ 20 milhões. O condutor, Oseias de Souza Rodrigues, disse à revista que "muita gente compra carros nessas condições e fica rodando até ser pego". Ele tomava cerca de 3 multas por dia desde 2015, quando comprou o veículo por R$ 600. Sem documentos. E se isenta de responsabilidade pelo fato de nunca ter dirigido bêbado, como se o próprio carro, em péssimas condições, não representasse risco de vida para ele e quem estivesse ao redor. O detalhe: Rodrigues nem tem habilitação. Pagou R$ 880 por dirigir sem ela e foi liberado.
Em novembro de 2016, a PM conseguiu pegar um Fiat Mille com débitos de R$ 9 milhões. Em dezembro do mesmo ano, também na avenida Aricanduva, um VW Gol foi recolhido com R$ 16 milhões em multas. Em outubro deste ano, um BMW devendo R$ 7 milhões. O Uol chegou a fazer um compêndio de carros com multas milionárias apreendidos. E o depoimento de Rodrigues à Veja confirma que não estamos diante de nada pitoresco, mas de uma prática corriqueira. De gente que compra carros sem documentos, ou com busca e apreensão expedida, e rodam como se não houvesse amanhã. Até que o veículo finalmente seja parado por uma blitz.
Isso mostra uma série de coisas. Como nosso desgoverno. No Brasil, ninguém sabe o tamanho real da frota porque há veículos que viraram sucata e que não sofreram baixa. Veículos sem licenciamento continuam a rodar tranquilamente por anos. Policiais ficam com pena de parar veículos em péssimas condições porque sabem que eles podem ser o ganha-pão de quem está dirigindo, mas se esquecem de que aquelas traquitanas podem ficar sem freios e matar muitos inocentes. Em suma, o governo falha em controlar, fiscalizar e em tirar das ruas o que já não deveria mais estar nelas. Mas o que há de pior em todas essas histórias é o que parece ser um ethos nacional, de gente que não se importa em comprar veículos ilegais, de forjar documentos ou de nem se preocupar com eles e que age como se isso fosse a coisa mais normal do mundo. Porque "não pega nada". Porque basta pagar uma multa e sair andando. Às vezes nem isso. E ainda tem quem culpe o fato de as infrações multiplicarem de valor como "indústria da multa", como se milhares de infrações não fossem motivo suficiente para alguém ser banido por toda a vida de chegar a 10 m de qualquer automóvel. Dirigir não é um direito. É um privilégio que só deve ser concedido a quem sabe a tremenda responsabilidade que isso envolve.
Ao não ficarmos escandalizados com esse tipo de coisa, ao deixarmos para lá, permitimos que se chegue a um nível de descrédito tão grande que soa a piada falar em um ambiente minimamente civilizado. Impera a anarquia, onde quem respeita a lei se sente um tremendo idiota e os "espertos" se vangloriam de encontrar negócios da China como esses de comprar carros sem documento, sem manutenção e dirigir sem CNH. E sem vergonha de fazer tanta coisa errada. O gosto por coisas que "não dão em nada" está nos levando a um país que não vai a lugar nenhum.