Em 2013, escrevi uma série de reportagens para o finado Jalopnik Brasil, infelizmente já fora do ar, sobre as tentativas brasileiras de ter uma fabricante brasileira de automóveis. A conclusão, infelizmente, era que havíamos perdido a oportunidade. Pelo menos com relação à indústria tradicional. Em resumo, a capacidade produtiva mundial já estaria subaproveitada, com ociosidade grande, e só restariam nichos para atender, como o de utilitários esportivos (na época, o TAC Stark era o melhor exemplo) e de elétricos. Só que o jogo muda rapidamente. De modelos de nicho, os elétricos ameaçam se tornar predominantes por uma série de razões que já apontamos na primeira reportagem da série "O drama dos motores a combustão". E pelo menos uma empresa genuinamente nacional já está de olho nisso. É a Mobilis, que apresentou há poucos meses seu primeiro produto, o Li. E que não deve ficar apenas em uma versão dele.
Mostrado oficialmente ao público em 9 de agosto deste ano, na Campus Party de Salvador, Bahia, o Li já está em desenvolvimento há quase 4 anos. Ele foi criado pela Mobilis. A empresa foi fundada no final de 2013 em Palhoça, Santa Catarina, pelos engenheiros mecânicos Mahatma Marostica, Thiago Hoeltgebaum e pelo engenheiro eletricista Paulo Bosquieiro Zanetti. E já nasceu com foco em modelos elétricos. Mais do que isso, com um plataforma modular, algo que Volkswagen e Toyota mostram ser a melhor alternativa para maximizar economias de escala.
O Li é um veículo pequeno, de dois lugares (com opção de mais dois). Ele tem apenas 2,67 m de comprimento, 1,59 m de largura, 1,59 m de altura e um diâmetro de giro de 9 m, o que facilita as manobras. Aos que acharem sua aparência muito simples, fica o alerta: ele traz freios a disco e suspensão independente nas quatro rodas (com dois amortecedores em cada uma). O vão livre é de ótimos 18 cm, outro fator evidente de adequação ao Brasil (e a seu "asfalto lunar"), e ele é vendido em três versões: Work (de trabalho), Trail (recreativa) e Comfort (a mais próxima de um carro de passeio). Seu motor elétrico, que impulsiona as rodas traseiras, tem 10 cv e 2,5 kgfm de torque. Aparentemente pouco, mas não para um veículo pouca coisa mais pesado do que uma moto grande: 450 kg. Ele tem duas opções de pacotes de baterias: um de 4,1 kWh, que lhe dá autonomia de até 50 km, e outro de 6,1 kWh, para percorrer até 100 km. "Temos a intenção de oferecer um pack de maior capacidade na versão de rua, mas estamos iniciando com o de 6,1 kWh", diz Zanetti.
De forma inteligente, o Li nasceu como uma espécie de carrinho de golf, para condomínios fechados e empresas, mas com elementos que os concorrentes não apresentam. O mais importante deles é o uso de baterias de íons de lítio, das quais ele tira seu nome (Li é o símbolo químico do lítio). Os concorrentes usam as tradicionais baterias chumbo-ácido, como as dos automóveis comuns, mas muito maiores e mais pesadas. E também menos duráveis, como se percebe nos próprios veículos a combustão, nos quais elas chegam, com esforço, a 5 anos de uso. As de lítio duram 10 anos. Só isso já ajudaria o Li a ter vantagem sobre os concorrentes mesmo sendo um pouco mais caro. Enquanto os elétricos importados custam cerca de R$ 43 mil, o modelo da Mobilis é vendido a R$ 50 mil. E esse não é o único trunfo que este modelo guarda na manga.
Seus concorrentes usam peças importadas e têm a manutenção concentrada nas mãos de seus importadores. Pegue os pneus especiais que eles usam, por exemplo. Segundo a Mobilis, cada um custa certa de R$ 600. Os do Li são pneus comuns. Suas peças são quase todas nacionais, como o para-brisa laminado, desenvolvido especificamente para ele e fabricado pela Vidro Forte, do Rio Grande do Sul. Os componentes de suspensão e direção, fornecidos pela Viemar, de Porto Alegre, são os mesmos usados por Ford Ka e Renault Clio. Cerca de 70% de todas as peças são feitas no Brasil. Uma das exceções está nas células de íons de lítio, mas projeto e montagem dos pacotes de baterias, com suas conexões e componentes de segurança, são todos de responsabilidade da Mobilis.
Some a estes fatores o sistema head-up display, encontrado hoje só em carros de luxo, que projeta no para-brisa informações como a carga da bateria e a velocidade. E também o sistema Mobi, que monitora o veículo pela internet e recomenda manutenções preventivas. "O Li está o tempo todo conectado com a internet, por isso manda e recebe dados que ajudam nos congestionamentos e qualquer possível anomalia consegue ser verificada em tempo real pela montadora de maneira remota", diz Marostica. Completam a receita o Li Card, que permite ligar o carro com um cartão que armazena as preferências de configuração de cada motorista, e o tablet, que pode ser incorporado ao painel e aos sistemas do veículo. Para um carrinho de uso em condomínios e campos de golfe, são credenciais muito impressionantes.
Tudo isso estará também na versão de rua, que deve custar em torno de R$ 60 mil. Note que, apesar de as imagens acima serem do Li para condomínios, ele já tem uma espécie de nicho para a placa. "Atualmente, estamos desenvolvendo as portas e fechamento do porta-malas. Mesmo estando hoje voltado para o mercado privado em vendas B2B, o Li já utiliza todos os padrões automotivos em conformidade com normas e orientações de projeto e requer poucas adaptações para homologação junto ao Contran", diz Marostica. A velocidade máxima do Li "emplacável" será de 100 km/h e ele deve conservar o nome atual. "O nome é uma referência direta ao elemento lítio, mas vamos estudar junto ao design estratégico. A versão de rua está prevista para o segundo semestre de 2018, provavelmente em outubro, em um lote piloto de 100 unidades."
Para viabilizar a produção inicial, os sócios buscam um aporte de R$ 2,5 milhões. "Possuímos diversas alternativas em estágio avançado: investimentos por meio de fundos (venture capital, principalmente), anjos ou subvenção. Esperamos que esse processo seja fechado no primeiro trimestre de 2018", diz Marostica. "Existem diversos fatores que tornam a empresa atrativa tanto para investidores quanto para agências de fomento: geração de empregos, tecnologia de vanguarda, altos preços de combustível, baixo custo de manutenção, modelo de negócios totalmente escalável/internacionalizável/disruptivo, projeto sustentável e com tecnologia móvel embarcada. Estamos há três anos com o time de engenharia, gestão e design desenhando o processo produtivo, desenvolvendo o modelo comercial e todos os fornecedores. O Li já nasce com diversas opções diferentes de fabricação a baixo custo e com toda a cadeia de suprimentos já desenvolvida, o que valoriza o projeto."
Com o investimento assegurado, a Mobilis inovará em outro aspecto: o da produção. "A ideia é montar microfábricas regionais que sejam ao mesmo tempo pontos de venda, de atendimento e montadoras. Isso só é possível porque inovamos na arquitetura do produto, que pode ser montado em pequenas áreas mantendo os padrões de qualidade automotivos", diz Marostica. Em outras palavras, o carro será fabricado, vendido e consertado no mesmo lugar. Um lugar muito menor do que uma fábrica convencional ocuparia, como o sistema iStream, de Gordon Murray, preconiza. "Nosso modelo de fabricação e, por consequência, de negócio teve influência em diversos outros modelos disruptivos. O iStream é um arranjo de conceitos como os de produção descentralizada (microfábricas), economia de ciclo e redução de massa em benefício da economia de energia, entre outros. Dá pra se dizer que o nosso modelo bebe nas mesmas fontes que o iStream e que empresas como a norte-americana Local Motors. Temos muitos ingredientes parecidos, mas em uma receita diferente, muito mais aplicada à realidade de países emergentes como o Brasil e focada na entrada no mercado já no curto prazo, enquanto as montadoras maiores posicionam (de maneira lenta) suas imensas estruturas neste novo mercado. Aí estão as oportunidades."
A grande questão para o Li e para a Mobilis é que, se ele tiver uma produção de mais de 100 unidades por ano, a empresa deixa de se enquadrar como uma fabricante de veículos de pequena série, como determina a resolução 597 do Contran. É ela que permite que o modelo não tenha de vir equipado com ABS ou airbags, algo que também pode ser visto negativamente pelos clientes. Marostica não vê dessa forma. "A obrigatoriedade destes itens é bastante recente no Brasil, de modo que a maioria das pessoas ainda lembra como os veículos que não possuem airbag e ABS também são seguros. Mais do que isso, na frota brasileira ainda há muito mais veículos sem estes itens rodando do que com eles. Acreditamos que não será uma exigência determinante para os compradores. Tem também o atenuante de que o Li é ultraleve, feito para uso urbano e não vai chegar a velocidades superiores a 100km/h. A estratégia de homologar como pequenas séries, limitadas a 100 unidades por ano, é lançar o produto minimizando o investimento. Isso nos permitirá validar e medir de maneira clara indicadores como a aceitação e interesse do público no nosso produto, quais os canais de distribuição mais acertados, qual a sensibilidade do consumidor ao preço etc. Com estes dados, fica muito mais viável dimensionar a escala que o mercado absorve e prospectar os investimentos necessários, com bom retorno sobre o investimento."
Se o modelo de produção é inovador, o de comercialização também poderá ser chamado assim. "O veículo homologado para as ruas será inicialmente oferecido a locadoras, frotistas e empresas de car sharing (mercado B2B). Assim, a venda é mais direta e o pós-vendas, controlado. Com as informações do perfil dos usuários, sobretudo de locadoras, posicionaremos o produto por regiões para o consumidor final", diz Marostica.
Por fim, o próprio Li não será um modelo elétrico convencional, feito sob os mesmos dogmas de carros com motores a combustão. Ele seguirá um modelo diferente. Colaborativo e mais próximo do que a britânica Riversimple pretende adotar. "Ano que vem pretendemos disponibilizar nossa plataforma para que outros desenvolvedores criem e produzam diferentes carrocerias e diferentes propostas de veículos aproveitando tudo o que já desenvolvemos de 'underbody'. Assim, o setor cresce e ganha força para levantar algumas bandeiras pela indústria de elétricos e nacional. O Li é um carro que pode ser completamente renovado. É possível trocar painel de instrumentos, bancos, peças de carroceria e fazer upgrade de vários itens a um custo bastante acessível. Muito mais econômico e sustentável que trocar de carro à medida que ele vai envelhecendo. Portanto, trata-se de uma proposta conceitualmente bastante diferente de um produto automotivo, que vai muito além da 'eletrificação' do motor", completa o sócio-fundador da Mobilis.
Como se pode ver, o pessoal da Mobilis não fez apenas a lição de casa muito bem feita. Eles também estão com tudo muito bem planejado. Basta que o Brasil, pelo menos desta vez, ajude. Ou que pelo menos não atrapalhe. "Estudamos casos brasileiros e internacionais de pequenas iniciativas, incluindo o Pompéo. Acreditamos que, com a simplicidade dos sistemas de propulsão elétricos, haverá uma proliferação de veículos para nicho e uma tendência de descentralizar um pouco a produção das gigantes montadoras. A migração dos sistemas a combustão para os elétricos é um movimento irreversível, mas ainda carece de produtos que acertem a receita para cada segmento, como a Tesla acertou nos sedãs de luxo e, aparentemente, agora nos sedãs médios, com o Model 3. É um jogo ainda bastante aberto e, no Brasil, se somam a isso algumas indefinições regulatórias e atrasos nas leis tributárias que afetam sobretudo as iniciativas pequenas", diz Marostica. Pois é...