Uma pessoa nos seus 30 anos ainda está na flor da idade. Um carro, ao chegar aos 30, pode tanto ser sucata quanto ser um clássico. Tudo dependerá de seu estado de conservação. E os clássicos, pela lei brasileira, ganham status diferenciado. Passam a fazer parte do patrimônio nacional, com direito a um emplacamento próprio, a famosa placa preta. Talvez você não saiba quem concebeu a lei da placa preta, mas deveria. O nome dele era José Roberto Nasser. Além de advogado brilhante, o cara era um jornalista de mão cheia e autor da coluna "De carro por aí". Foi presidente da FBVA (Federação Brasileira de Veículos Antigos), fundador do Museu Nacional do Automóvel, que preserva raridades como o FNM Onça, o Willys Capeta e a picape Troller Pantanal. Um cavalheiro dedicado a preservar a memória do automóvel nacional. Nasser "encantou-se" no começo desta sexta-feira (9). Seu motor decidiu-se a parar de funcionar. Subitamente. Ironia das ironias, foi-se no mesmo dia em que um clássico brasileiro nasce, o VW Gol GTi, apresentado no Salão do Automóvel neste mesmo dia há exatos 30 anos.
O GTi foi não apenas o primeiro carro a ser vendido no Brasil com injeção eletrônica. Ele também era um esportivo de primeira linha, especialmente para os padrões da época. Seu motor 2.0 rendia hoje parcos 120 cv a 5.600 rpm e 18,4 kgfm a 3.200 rpm, mas isso era suficiente para levar o carrinho de 997 kg a 185 km/h e de 0 a 100 km/h em 8,8 s. Vendido apenas na cor Azul Mônaco, perolizada, ele tinha 3,85 m de comprimento, 1,60 m de largura, 1,36 m de altura e um entre-eixos de 2,36 m. Menor que o do Kwid. Vinha com para-choques cinzas, rodas de liga leve de aro 14, com pneus 185/60 R14, lanternas escurecidas, faróis de longo alcance, faróis de neblina e bancos esportivos. Era esse o conjunto que qualquer fã de carros naquela época poderia querer. Mesmo a chegada dos importados, em 1990, não foi suficiente para abalar o prestígio do modelo. Nasser certamente acompanhou o lançamento do GTi.
Um GTi original, em bom estado, deve valer hoje uma pequena fortuna. Porque é carro com história. Como as que Nasser colecionou ao longo dos anos de cobertura jornalística. Enquanto o GTi se torna oficialmente clássico agora, Nasser nasceu com essa característica, marcada pelo estilo de seu texto e até pela indefectível gravata borbotela com que se apresentava e que a charge abaixo imortaliza. Conhecido por perguntas desconcertantes nas coletivas, ele batalhava nestes anos pela sede do Museu Nacional do Automóvel. Ela ficava em um prédio do Ministério dos Transportes, mas o edifício foi requisitado para armazenar arquivos da RFFSA. Outra ironia: um dia antes de morrer, sua secretária recebeu uma ligação do subsecretário de assuntos administrativos do ministério, que havia decidido ceder o edifício à iniciativa de Nasser. E à preservação da história.
Ao contrário de Og Pozzoli, de quem era amigo íntimo, Nasser protegeu seu patrimônio juridicamente. Dever de ofício. Criou a Fundação Memória dos Transportes para cuidar de seu acervo. Para nossa sorte, as preciosidades de Og Pozzoli passaram aos cuidados da Fundação Lia Maria Aguiar. Quanto às de Nasser, o prédio assegurado talvez deixe de ser com sua morte. Torcemos para que ele seja sucedido na proteção dos veículos por alguém tão habilidoso quanto ele. O que, cá entre nós, seria pedir demais. Basta que seja competente em preservar a história. As que Nasser escreveu estão registradas. As que ele protagonizou serão contadas por amigos, família e colegas. Os futuros GTi com placas pretas serão, todos eles, um testemunho da passagem deste cara pela Terra. Lembre-se dele quando cruzar com algum. A pé ou de carro por aí.