Foi em 62 a.C. que o imperador romano Júlio César teria decretado seu divórcio de Pompeia. O episódio, de menor importância, rendeu uma frase que ficaria célebre: "À mulher de César não basta ser honesta. Ela tem de parecer honesta". Aplicada em uma série de situações, ela também servirá, um dia, muito bem aos motoristas brasileiros. Enfiados na vergonha de terem um dos trânsitos que mais matam no mundo, eles são responsabilizados por todos os acidentes, mesmo aqueles que possam ter sido causados por defeitos mecânicos ou por problemas nas vias. A razão? Porque eles "não parecem honestos". Nós não parecemos honestos.
Não é preciso ir longe para encontrar relatos diversos de imprudência nas estradas. E os exemplos são os mais diversos, como o do motorista que andou 300 m de ré em uma estrada em Goiás. Ou um Chevrolet Camaro a 192 km/h numa estrada com máxima de 100 km/h. Ou o motociclista que rodou quilômetros na contramão até bater de frente com um carro. A coleção de absurdos é interminável. E acoberta bem qualquer responsabilidade que as más condições das estradas ou mesmo problemas nos veículos possam ter.
Tanto é assim que há quem diga que 97% dos acidentes são causados por "fator humano". Isso em um país em que apenas 6% de todos os recalls convocados foram considerados concluídos. Recalls, vale lembrar, são convocados apenas para produtos que oferecem risco às vidas daqueles que os utilizam, segundo a lei brasileira. E só podem ser encerrados se todos os veículos envolvidos tiverem sido reparados. Muitas fabricantes se esforçam em sanar os problemas, como a Toyota com o recall dos airbags da Takata. Em vão. Outras escondem os problemas com os chamados "recalls brancos", boletins técnicos que permitem que as concessionárias sanem problemas de segurança sem que o consumidor saiba de sua existência. Foi contra eles que a Anvemca se insurgiu no final dos anos 1990. A associação, criada por Jaílton de Jesus Silva, aparentemente não existe mais.
Em outras palavras, há milhões de carros em nossas ruas que podem matar por defeitos mecânicos. Para piorar, nossas estradas são péssimas. E não falamos apenas em má conservação, como a que fez esse Chevrolet Omega evitar um acidente quase certo em uma reportagem antiga da TV Globo.
Para desviar de buracos, o Fiat Palio invadiu a pista do Omega. E quando a própria pista joga o motorista para fora, por buracos ou erros de projeto? E quando se sabe que a via é perigosa, como no caso da PR-092? E quanto às curvas que jogam o carro para fora da pista, como aquelas contra as quais o professor Ardevan Machado lutou até sua morte, em 2003? Quantos acidentes não acontecem neste país exatamente pelo mesmo motivo? Difícil saber. Afinal, é mais fácil culpar o motorista irresponsável e imprudente pelo acontecido.
Quando quiser bancar o piloto na estrada, arriscando sua vida e a dos outros em velocidade muito acima da permitida, carregar seus filhos soltos no carro, beber e dirigir, dar ré em uma via porque errou o caminho, andar na contramão "só de onda" ou "porque é pertinho" e outras barbaridades que o gabaritam como um mau motorista, lembre-se de que pode haver problemas em seu carro. Ou na pista. Mas que o culpado, independentemente destes fatores, será sempre você. Quem perderia tempo em investigar as causas de um acidente envolvendo quem notoriamente dirige mal? Faria uma perícia atrás de defeitos no carro? Ou de problemas na estrada? Mais fácil botar na conta do "fator humano". Porque "à mulher de César não basta ser honesta. Ela tem de parecer honesta". Em outras palavras, é preciso ter moral para cobrar soluções. E ter moral, no trânsito ou fora dele, só depende de você.